A história de Mora: ‘primeira-dama’ em missão oficial
José Sarney e Ulysses. Guimarães JAMIL BITTAR / O GLOBO
Vou falar hoje da minha viagem à Ásia, na estranha condição de primeira-dama do país, em dezembro de 1985. Poucos sabem, mas, por quase 20 dias, o Brasil viveu sua segunda experiência parlamentarista, por decreto do presidente José Sarney.
Sarney queria, com toda a razão, livrar-se de meu marido para tentar fazer o seu primeiro Ministério (o que tinha era herança do Tancredo), aproveitando-se da lei de desincompatibilização. A mesmíssima coisa que agora tenta a presidente Dilma.
Ulysses, na verdade, já tinha programado uma viagem ao exterior. Sarney, então, muito gentil, enviou mensagem a todos os governos dos países que visitaríamos, informando que meu marido estava em missão como chefe de Estado.
O "chefe" de governo fez mais ainda: achou nossa viagem muito curta e a esticou, enviando Ulysses para o Vaticano, como emissário de uma carta ao Papa.
A viagem foi muito oportuna. Meu marido já apresentava sinais gritantes de estafa. O ano tinha sido terrível: doença e morte de Tancredo, que Ulysses emendou com a campanha municipal.
Se eu pudesse escolher uma cena daquele ano, eu escolheria aquela que, pelo menos para mim, marcou o fim da ditadura no meu país: o aperto de mão entre o general Ernesto Geisel e Ulysses, no velório de Tancredo, no Palácio do Planalto.
Pela primeira vez, Ulysses, que passou a vida toda dizendo não ser "rampeiro", subiu a rampa.
Geisel e Ulysses! Os dois ali, diante do caixão de Tancredo, derrotados pelo destino, olhos nos olhos, como se estivessem passando em revista a história que viveram juntos, em trincheiras opostas. Nenhuma palavra. Só olhos nos olhos e apenas um gesto: as mãos estendidas.
Meu Deus, que cena!
O gesto foi aquele. O símbolo foi aquele. Figueiredo não deu posse a Sarney. Mas o destino escreveu a História à sua maneira. Figueiredo e Sarney não tinham nada a ver com aquele acerto de contas. Eram coadjuvantes do mesmo lado, da mesma origem. O assunto tinha que ser resolvido entre o general da ditadura e o líder da oposição.
Enfim, embarcamos para a Ásia depois de todas essas fortes emoções. Fomos diretamente para a China e, de lá, para Japão, Coreia do Sul, Hong Kong, Tailândia e, finalmente, para a Itália.
A nossa comitiva era enorme, e foi se desfazendo no meio do caminho, até chegarmos a Roma, num grupo de cinco casais. Convém citar apenas os mais unidos: Severo Gomes e Henriqueta, Heráclito Fortes e Mariana, e Afrânio Nabuco e Maria Rita. Reputo ter sido essa a viagem mais longa e interessante da minha vida.
Com Ulysses guindado à condição de chefe de Estado, éramos recebidos com pompas e circunstâncias: tapetes vermelhos, tropas perfiladas e bandas de música.
Nosso mascote era o Severo Gomes, um pândego. Em Pequim, zombava muito do desligado do meu marido, a quem só chamava de "o nosso grande timoneiro":
— Ulysses, só você para vir aqui na China e encher a boca: "Só com eleições diretas, livres e populares é que se constrói uma nação verdadeiramente democrata". Acorda, Ulysses! Isto aqui é uma ditadura.
Relações internacionaisO presidente Li mal apertou as mãos de Ulysses e já foi falando mal do Reagan
Hilário foi o encontro do meu marido com o presidente chinês, Li Xiannian, muito extrovertido e simpático, que nos hospedou na famosa Dayoutai, na Ilha dos Pescadores. O presidente Li mal apertou as mãos de Ulysses e já foi falando mal do Reagan, com quem tinha conversado em recente viagem aos Estados Unidos:
— Fui pedir aos americanos para que deixassem a América Central decidir seu próprio destino, e eles só sabiam me responder: "é melhor o senhor falar primeiro com os soviéticos".
Ulysses, sempre desligado, elogiou o trânsito de Pequim, em mais uma gafe registrada por Severo:
— Dizem que o trânsito aqui é caótico, mas eu achei melhor do que o de São Paulo. Chegamos rápido até aqui.
Enquanto o Severo punha as mãos no rosto, fingindo-se envergonhado, o presidente chinês rebate:
— O senhor só conseguiu chegar até aqui porque, como chefe de Estado, está escoltado, Mister Guimarães.
Ulysses lembrou ter visto muitas bicicletas pelas ruas de Pequim e foi logo tentando vender nossos automóveis. O chinês rejeita:
— A China já importou carros demais. A importação de carros de passeio é excessiva. Os chineses são esquisitos: nossos carros são muito bons, mas só queremos andar de carros japoneses.
Aí, foi a vez de o presidente Li tentar vender seus produtos ao meu marido. Teve seu merecido troco:
— Mister Li, quem sou eu para contestar a milenar sabedoria do seu país, mas trocar seu petróleo por nossas madeiras e minérios não é um bom negócio da China.
Nesse mesmo dia, fomos, por insistência do Afraninho e do Heráclito, jantar na recém-inaugurada filial do famoso restaurante parisiense Maxim’s de Pequim. Ulysses fez um discurso contra:
— Gilberto Amado tem razão: brasileiro não sabe se comportar fora do país. Vamos ao Maxim’s pedir consomée de barbatana de tubarão?
Ulysses brincou, mas até que a sopa de barbatana de tubarão foi o prato menos exótico que comemos lá. Comigo aconteceu quase a mesma coisa do que com a Marisa Letícia, na sua primeira visita à China. Quando lhe ofereceram carne de cachorro, Marisa perguntou à chinesinha que a servia:
— Au-au?!
E a mocinha:
— Au-au!
Marisa insiste:
— Au-au?
— Au-au!
— Au-au-au?
— Au-au-au!
Deixemos essa conversa onomatopeica e vamos aos encontros oficiais.
Com o primeiro-ministro Zhao Ziyang, que já conhecia meu marido, a visita foi quase uma farra. Àquela altura, Severo e o senador Cafeteira, que também integrava a comitiva, já tinham quebrado o rígido protocolo chinês. E Bocayuva Cunha, outro irreverente membro da nossa delegação, andava com um cantil de uísque, debaixo da farda do Exército chinês, o único agasalho capaz de segurar a temperatura de mais de 20 graus negativos.
Só descobri que o Bocayuva escondia o "ouro" por causa da imensa roda que se formava em torno dele nas nossas curtas visitas a locais desprotegidos de calefação. Ulysses era o mais assanhado de todos:
— "Boca", vamos tomar uma na veia!
E eu:
— Credo, Ulysses, parece linguagem de botequim!
O "na veia" era tomar doses puras de uísque, numa talagada só. Pareciam crianças.
Acho até que foi nesse clima que a gloriosa comitiva foi ao encontro do primeiro-ministro, um homem muito diferente, até fisicamente, do presidente Li. Mas, na hora dos negócios, todos eram chineses.
Tudo ia bem até o "premier" perguntar o que os brasileiros teriam a oferecer à China. O primeiro a pedir a palavra para responder foi o senador Hélio Gueiros, do Pará:
— Somos famosos pelos nossos minérios, nosso principal produto de exportação!
O deputado Prisco Vianna proclama:
— Sou da Bahia. Nosso principal produto de exportação é o cacau!
E coube ao senador Cafeteira encerrar triunfalmente a audiência:
— O principal produto do Maranhão, meu estado, é o presidente José Sarney. Mas não acho que ele seja produto de exportação. Ele é "invendável" e "inemprestável".
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