Por Marcio Zonta - de Imperatriz (MA) - Brasil de Fato
O tempo de vida de um homem é o período histórico que reflete seu papel na sociedade.
Poucas pessoas resistiram viver por longos anos ameaçados pela morte, na mira de uma arma muitas vezes oculta, mas apontada para aqueles que incidiram contra o revés da história política brasileira.
Prestes a completar 80 anos de vida, o maranhense Manoel Conceição Santos, ou como é chamado pelos companheiros e familiares, Mané da Conceição, é um desses personagens vivos da memória do país, que perdurou na luta de classes em diversos momentos.
Começou sua trajetória, “pura militância”, como prefere descrever sua inseparável companheira Denise, organizando em sindicato os trabalhadores rurais que tinham suas pequenas parcelas de terras ameaçadas pelos latifundiários em Pindaré Mirim (MA), na metade do século passado.
Daí em diante, virou um dos principais líderes camponeses do Nordeste e passou a colecionar histórias, desafetos e companheiros pelo mundo.
Minha perna é a minha classe
Uma das passagens que o marca como pessoa e lutador do povo acontece ainda na pequena Pindaré Mirim. Preocupado com a situação de atendimento precário da saúde no município maranhense, que não dispunha de um médico, contratou um profissional para atender a população no próprio sindicato.
Tal atitude causou a fúria das autoridades locais. No primeiro dia de atendimento, agentes do Estado invadiram o sindicato atirando. Mané foi alvejado com dois tiros de revolver no pé esquerdo e dois tiros de fuzil no pé direito, levando à amputação desse membro.
O policial que atentou contra a vida de Mané, temendo a represália dos camponeses, disse à época que o mandante do ataque era o governador do Maranhão, José Sarney.
Na ocasião, Mané escreveu uma carta, datada de 27 de julho de 1968, do alto de seu leito num hospital em São Luis, firmando uma frase que o identificaria internacionalmente. “Aos que pensam que arrancaram minha perna, quero dizer que se enganam: Minha perna é a minha classe”.
Pós – recuperado, é convidado por entidades da esquerda nacional para uma viagem pela Europa, Oriente Médio e para a China, onde fez um curso de guerrilha.
Na volta, os milicos, insatisfeitos com o itinerário realizado pelo camponês, o esperavam. Foi preso e torturado em diversas partes do país, por onde perambulou por cadeias. Em São Paulo, foi brutalmente espancado sob a supervisão do então delegado Romeu Tuma na sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
“Depois de três anos e meio preso, os militares diziam que só tinham duas saídas para o Mané, ou a morte ou ir embora do país”, relembra Denise.
O nome do camponês estava em diversas listas de comitês internacionais que lutavam pela libertação de presos políticos no Brasil.
Solto, em 1975, vai para o exílio na Suíça, tendo como companheiro Paulo Freire. Ambos organizavam refugiados políticos na Europa e denunciavam as atrocidades do governo militar.
Anistiado em 1979, volta ao país e, para quem acha que Mané tinha cansado, “é um dos principais protagonistas pela retomada da luta de terra no Maranhão”, rememora Valdinar Barros, coordenador do assentamento Vila Conceição.
Dessa forma, ajuda a organizar os principais sindicatos rurais combativos, além de levar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para a região.
“Manoel da Conceição ainda contribuiu na organização de entidades importantes no cenário nacional, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Partido dos Trabalhadores (PT) – o camponês é o terceiro a assinar a ata de fundação do partido – e o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU)”, elenca o historiador Raimundo Lima dos Santos.
Embora encharcado de uma vida, que por si só se confunde com o último período da história do país, Mané recebeu a reportagem do Brasil de Fato sereno, lúcido, porém cego de um olho e com um problema de saúde que acomete sua memória. Os médicos dizem ser consequência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC), além das várias pancadas que levou de seus inimigos na cabeça.
O local do encontro para a entrevista é a Vila Conceição, a primeira ocupação de terra no Maranhão, em 1987, tendo o camponês como um dos líderes da ação. Sob uma tarde quente, na cidade de Imperatriz e uma ventania que sopra, mas não ameniza o calor da biografia de Mané da Conceição.
Sentado, com uma postura firme, apesar de fazer uso de prótese na perna direita, parece deixar um recado. Hoje, não tendo mais como guardar sua própria história “entrego-a à minha classe para que outros dêem continuidade à minha vida”.
Brasil de Fato – Qual o significado da terra para o camponês?
Manoel da Conceição – A terra é para servir a vida, a base de uma sociedade humana e fraterna. Olha hoje esse assentamento que nós estamos, todo mundo com sua terra para produzir e não morrer de fome.
Quando o senhor se engaja na luta pela terra?
Eu nasci em 1935, na região da Pedra Grande no Maranhão e lá minha família já tinha problema com os fazendeiros. Mas, eu comecei a luta pela terra em 1957, em Pindaré Mirim, porque tinha uma contradição com os fazendeiros. Eles soltavam os gados para comer a roça das famílias. Tínhamos um lema: “O gado que come roça, come bala”, matávamos o gado todinho e distribuía para as famílias camponesas.
Essa é primeira constatação que havia interesses distintos entre camponês e latifundiário?
Sim, era a figura do dono da terra e os despossuídos do chão. Nunca podemos acreditar que um dia os latifundiários vão se arrepender das atrocidades que cometem contra os trabalhadores rurais. “Para os inimigos a nossa força, para os companheiros, compreensão”. Esse era outro lema dos camponeses, que começavam a se organizar em sindicatos rurais na década de 1960 no interior do Maranhão.
É o tempo da luta embrutecida?
Essa era a fase daquela música [começa a cantar: “O Risco que corre o pau corre o machado, não há o que temer, aquele que manda matar também tem que morrer. Eu já tenho machado falta só botar a cunha, e fazer a moda gato, dar o tapa e esconder a unha. Nós estamos em guerra, o lado de lá já decretou, pois já pagou pistoleiro para matar trabalhador. É a nossa proposta, pois a gente quer ganhar, se matarem um daqui, dez de lá vamos matar...”]
Tem me morrer e matar para mudar as coisas. A luta de classes é assim, extremamente violenta. Quem está no poder não quer sair e quem não está quer entrar. Para mudar o rumo da política, só o enfrentamento. Ao longo desses anos, mataram muitos camponeses, mas nós também derrubamos do lado de lá. E sei que muita gente ainda vai morrer por causa da luta pela terra no Brasil.
Como o senhor conseguiu chegar aos 80 anos nesse contexto violento?
Sempre disseram que eu era um matador a sangue-frio, mas nunca matei ninguém, somente me defendi. O que eu mais fiz na minha vida foi destruir o latifúndio e fazer com que os pobres pudessem se apoderar da terra.
Quais são os desafios da luta pela terra atualmente?
São muitos, a bandeira pela reforma agrária é uma a ser utilizada pelos camponeses. Mas, a formação é outro caminho importante. Temos que formar quadros na cidade e no campo. O trabalhador e a trabalhadora precisam tomar conhecimento sobre o mundo. Eu não tinha formação nenhuma quando eu era adolescente, só fui adquirir consciência política na juventude. Naquela época, tinha muito companheiro que não tinha clareza das coisas e nós tínhamos que fazer um trabalho de formação para que os camponeses entendessem que aquela disputa pela terra, ou a luta contra o latifúndio, era para fundar uma nova sociedade, que melhoraria para muitas pessoas.
O senhor é um dos fundadores do PT. Está decepcionado com o partido, que apoia a oligarquia Sarney no Maranhão?
Não vou largar o PT agora, ainda existe possibilidade de mudanças.
Qual a sua relação com Sarney?
O Sarney fez uma campanha com um discurso bonito em 1966 para governo do Maranhão. Eu acreditei nele e os camponeses em geral apoiaram sua candidatura, principalmente no tema da reforma agrária. Mas quando foi eleito, combateu com bastante violência as ações dos camponeses no Maranhão. Eu cortei todas as relações que eu tinha com Sarney há muito tempo. Ele nunca mais me procurou também.
O senhor se lembra da viagem que fez a China na década de 1960?
Sim, viajei por vários lugares do país chinês. Não encontrei com Mal Tse Tung, ele estava muito atarefado, tive muita vontade de vê-lo, mas apenas trocamos mensagens via seus assessores.
Que mensagem o senhor deixa aos camponeses que reivindicam a reforma agrária no Brasil?
Ainda hoje eu penso: se a gente esquecer de lutar pela terra nós estamos indo pelo caminho errado, tem que conquistar a terra sabendo o que vai fazer com ela. Uma coisa que nós conseguimos compreender em todo esse tempo de luta é que a terra é um bem comum e não pode ser destinada a quem somente quer ganhar dinheiro.
O que faz um homem que chega aos 80 anos com tanta história?
Entrego-a à minha classe para que outros dêem continuidade a minha vida.
Título original: 'Um camponês a serviço do Brasil'
(Colaboraram Charles Trocate e Bernardo Trocate)
(Foto/Marcelo Cruz)
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