Após morte de adolescente, MPT pretende processar Vasco por trabalho infantil
Procuradora diz que tentou negociar por mais de um ano ajustamento de conduta. Diretoria argumenta que exigências não estão previstas na Lei PeléPor Daniel Santini - Repórter Brasil
Enterro de Wendel, adolescente de 14 anos que faleceu durante teste para entrar nas categorias de base do Vasco. Foto: Alexandre Araújo/Lancepress! |
Estamos negociando [o TAC] há mais de um ano. O clube toda vez se compromete a assinar, mas não assina. Sempre propõe novas cláusulas. Cansamos de esperar boa vontade e vamos partir para a Justiça”, argumenta Danielle. Wendel faleceu de morte súbita enquanto participava de uma seleção para entrar nas categorias de base da equipe.
A tragédia chamou atenção de autoridades para problemas nas categorias de base não só do Vasco, mas em todo o país. Com base no episódio, representantes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Fórum Nacional pela Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) e de Conselhos Estaduais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente se mobilizam para intensificar a cobrança por mudanças. O grupo conta com o apoio do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que teme que a exploração de adolescentes no futebol aumente com a realização da Copa do Mundo ao Brasil, e da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Governo Federal. A OIT defende a reformulação nas categorias de base de todos os clubes brasileiros.
A diretoria do clube ressalta que a morte de Wendel ocorreu em um teste e que, mesmo que as providências exigidas fossem tomadas, dificilmente a tragédia poderia ter sido evitada. “Ele estava participando de um teste leve, não de competição. Era um menino que desde os 9 anos jogava futebol de competição na cidade dele [São João Nepomuceno (MG)]. Tinha sido campeão em todos os anos e foi titular da seleção local. Ele estava aparentemente apto para a prática de esporte. Foi uma grande fatalidade. Se esse menino tivesse falecido em qualquer outro lugar, ninguém estaria falando nada”, sustenta Aníbal Rouxinol, vice-presidente jurídico do clube.
Entre os problemas apontados pelo MPT está a ausência de registro dos adolescentes de 14 anos a 16 anos que compõem as equipes de base na categoria de aprendiz, o que, de acordo com as autoridades ouvidas pela reportagem, configura trabalho infantil.
Lei Pelé
O Vasco nega a exploração de adolescentes “Entendo e respeito [o posicionamento das autoridades], mas a Lei Pelé me impede de fazer qualquer registro de menor de 16 anos”, coloca o representante jurídico do clube. O artigo 29 da Lei Pelé estabelece que “o atleta não profissional em formação, maior de quatorze e menor de vinte anos de idade, poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes”. Apesar de a Lei Pelé não deixar clara a obrigatoriedade, o artigo 403 da Lei 10.097/2000 é direto quanto à necessidade de registro para adolescentes com mais de 14 anos exercendo atividades profissionais: “É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos”.
O presidente Roberto Dinamite. Foto: Marcelo Sadio/vasco.com.br |
“O Ministério Público [do Trabalho] quer fazer um grande evento porque o Vasco é o primeiro clube a assinar um TAC. O Vasco é sempre o primeiro em tudo. Nós vamos assinar. Ficamos de marcar uma data, houve uma série de complicações, a agenda do presidente [e ex-jogador Roberto Dinamite] é muito ‘impressada’ porque ele é também deputado estadual”, completa
Direitos da criança e do adolescente
Além do MPT, o Ministério Público Estadual (MPE/RJ) também cogita processar o clube por violações de direitos da criança e do adolescente. “Estamos estudando se entraremos com as medidas judiciais cabíveis. Acompanhamos a situação há bastante tempo e fomos surpreendidos pela morte deste menino que faleceu em local que não conhecíamos”, relata a promotora Clisanger Ferreira Gonçalvez Luzes, que atua junto com a procuradora Danielle no caso.
Em inspeções anteriores realizadas em São Januário, sede do Vasco, Clisanger diz ter encontrando jovens em condições inadequadas, em “dormitórios precários e banheiros em péssimos estados”, e ressalta que, apesar da negociação de ajustes em curso, o clube nunca informou as autoridades sobre a existência de outro espaço para treinos e testes de garotos. O Vasco alega que o centro de treinamento onde o adolescente faleceu em Itaguaí (RJ), a 69 km da capital fluminense, ainda não pertence ao clube, apesar de haver uma negociação em curso para sua aquisição. E nega que os atletas da categoria de base tenham sido instalados anteriormente em condições inadequadas.
A morte aconteceu em meio a um dos testes realizados pela equipe para selecionar novos talentos. Cada processo de seleção é composto por três fases. O jovem havia sido aprovado pela primeira e acabou tendo um mal súbito após 12 minutos da segunda fase. Não havia médicos no local. “Entre as adequações que vínhamos cobrando está a observação de direitos mínimos como assistência médica e alimentar durante o período de testes. Ainda que não exista uma relação de trabalho, esses garotos em período de testes tem que ter proteção. A adoção de medidas preventivas poderia evitar ocorrências como esta”, complementa a procuradora Danielle. A diretoria do clube comunica que, após o episódio, todos os testes passaram a contar com médicos de plantão por determinação do presidente Roberto Dinamite.
Isa Oliveira, do Fórum Nacional pela Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil Foto: Fábio Pozzebom/ABr |
Para a secretária-executiva do FNPETI, Isa Oliveira, o clube errou e tem culpa por não manter médicos de plantão enquanto garotos eram testados em exercícios físicos. “É negligência do clube. Não se garantiu ao adolescente um pronto atendimento médico. É uma questão grave”, afirma. O Vasco não pretende indenizar a família pelo ocorrido. Após o episódio, o pai do menino, Antônio Carlos Venâncio da Silva, deu entrevistas isentando o clube de culpa.
“A família precisava de apoio em relação ao óbito, ao enterro. Mandamos dois psicólogos. Com relação à indenização é uma culpa que a gente não pode absorver. Foi uma fatalidade. O pai ficou grato ao Vasco, falou para a imprensa que a atitude do Vasco foi humana, foi perfeita. Vou indenizar como? Por quê? Sei que alguns advogados estão trabalhando a família. Mas tudo que eles precisarem, é só chegar ao Vasco e ao nosso presidente que é ex-atleta, com uma sensibilidade incrível, tudo que a família precisar. Nós só podemos lamentar”, resume o vice-presidente jurídico.
Base legal
“Temos defendido a limitação do período de testes, que eles aconteçam durante um breve período no começo do ano para que os alunos não percam o período letivo na escola. Hoje, muitos tentam fazer testes em vários clubes e acabam perdendo o semestre”, acrescenta a procuradora do trabalho. “Isso não é só no Vasco. Acontece no Brasil todo. É difícil colocar essa questão. Os clubes visam o alto rendimento e acabam esquecendo que tem ali um adolescente que, além de jogar futebol, tem outros direitos”, completa.
O MPE/RJ também considera que o problema não se limita ao Vasco e pretende estender a fiscalização a outros clubes. “Os clubes exploram o sonho dos meninos de serem jogadores de futebol e se aproveitam da carência de recursos financeiros e econômicos das famílias. Muitos vêm de todo o Brasil para tentar a sorte nesses grandes clubes. Essa questão é bastante preocupante porque apenas uma parcela dos que tentam conseguem se tornar profissionais, que dirá atletas com fama e dinheiro. E muitos acabam sem educação, convivência familiar e comunitária”, diz a promotora Clisanger.
Não é só no Rio de Janeiro que problemas têm sido constatados. Em Minas Gerais, clubes como o Atlético Mineiro e o Cruzeiro também foram pressionados recentemente a firmar acordos. No Paraná, também há discussões em curso nesse sentido. Em função da realização da Copa do Mundo no Brasil em 2014 e das Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016, as autoridades temem que o número de adolescentes explorados aumente no mesmo ritmo que o sonho de sucesso por meio do esporte. O MTE prepara uma série ações para tentar regularizar a questão. Hoje, no Brasil, nenhum clube tem cursos validados no sistema nacional de aprendizagem para fazer os registros considerados necessários pelas autoridades.
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